Pescadores/as artesanais quilombolas recorreram da decisão, que prejudica a sobrevivência e a tradição religiosa dos/as moradores/as de Rio dos Macacos. A reintegração de posse da Barragem pela Marinha do Brasil evidencia que a recente titulação do território quilombola foi apenas parcial, tendo em vista que, além da terra, o maior bem da comunidade são as suas águas tradicionalmente utilizadas.
Diante da recente violação de direitos contra o Quilombo Rio dos Macacos orquestrada pela Marinha do Brasil, pescadores/as, com o apoio da AATR, entraram com um agravo de instrumento – recurso cabível contra as decisões tomadas pelo (a) juiz (a) no curso do processo, antes da sentença –, em defesa das águas do território quilombola. A iniciativa é uma reação à liminar, deferida pela magistrada da 7ª Vara Agrária Federal, que autorizou a reintegração de posse da área da barragem pela Marinha, o que potencialmente significa o impedimento do uso das águas pela comunidade.
De acordo com a liminar de 17 de outubro, os quilombolas que residem no território ficam impedidos de usar as águas do próprio rio dos Macacos, do Rio do Barroso e de outras fontes de água represadas pela Barragem para consumo próprio, plantio, pesca, cultos espirituais, entre outros, uma vez que a Marinha é contra o uso compartilhado das águas da barragem. Portanto, com esta decisão, a União pretende retirar um bem essencial para o modo de vida e alimentação, que a comunidade faz uso historicamente.
O recurso foi interposto com o objetivo de representar, em especial, os/as pescadores/as de Rio dos Macacos, que dependem diretamente das águas represadas para a garantia da própria sobrevivência e modo de vida, tendo em vista que a Marinha destinou a sua ação contra a Associação dos Remanescentes de Quilombo de Rio dos Macacos e pessoas “incertas e desconhecidos”. A AATR lembra que não se trata de pessoas incertas e/ou desconhecidas, todas têm nome, sobrenome, portanto são indivíduos dotados de legitimidade e direitos.
A disputa pelo território entre a Marinha e o Quilombo Rio dos Macacos acontece desde a década de 1950, quando da chegada da Marinha para a construção da Base Naval de Aratu, Vila Naval e a própria Barragem. Em julho deste ano, o quilombo, após longa batalha judicial, recebeu a titulação do território de Rio dos Macacos. Em que pese a área identificada pelo INCRA englobar as águas represadas pela barragem, a titulação conquistada pelo Quilombo foi apenas parcial. Neste sentido, a União não pode tomar para si um bem natural que está associado à identidade, à memória e ao existir dessa comunidade.
Território tradicional: jamais esquecer que os quilombolas chegaram antes
O uso tradicional das águas do Rio dos Macacos pela comunidade acontece desde antes mesmo da chegada da Marinha e a construção da Barragem.
A Barragem de Rio dos Macacos é uma junção de vários pequenos rios como os rios dos Macacos, o Barroso, o do Cobre e o da Prata, fontes de águas que foram desviadas e que também já eram utilizadas pelos moradores locais por causa da quantidade e diversidade dos peixes.
O rio da Saúde era o principal para consumo, mas também existia o rio do Cafonge e o Barroso usados para pescar. Bastante conhecidas na comunidade e referências de grande importância eram as fontes que levavam o nome de seus moradores como a fonte do “Isídio”, de “Fia”, de “Floripe”, Rio do Prata, Nascente da Saúde e a fonte de “Luzia”, que todos os moradores conhecem até hoje a sua localização, apesar de não existir mais esta fonte. Ao todo existiam cerca de 11 fontes de água utilizadas historicamente pelos moradores de Rio dos Macacos.
Portanto, para a garantia de direitos básicos e necessários à sobrevivência do Quilombo Rio dos Macacos e seus integrantes, sobretudo dos/das pescadores/as artesanais, é necessário o uso das águas da barragem.
Titulação parcial abre brecha para que a Marinha do Brasil viole direitos fundamentais e impeça o acesso às águas
Embora não tenha sido titulada em favor da Comunidade, a Barragem faz parte do território quilombola. O uso histórico das águas da Barragem pelos moradores do Quilombo está comprovado no Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) produzido pelo INCRA.
Apesar do território identificado no RTID ter uma área total de mais de 300 hectares, o INCRA titulou 1/3 da área, ou seja, apenas 98 hectares, sem as fontes de água. Com esse arranjo imposto pela Marinha a comunidade fica impedida de usar as águas do Rio dos Macacos. Aparentemente, se trata de uma estratégia para inviabilizar a vida na comunidade, sendo que as principais fontes de sobrevivência estão no rio.
Disputa pelo território é marcada por violência, racismo institucional e religioso
As tentativas de extermínio da cultura e as violações são históricas e atingiram, inclusive, terreiros que se encontravam no território antes da invasão da Marinha. Muitos dos terreiros foram destruídos pelos próprios agentes da Marinha que utilizaram de todas as formas para inviabilizar os cultos no território. “Na beira do rio, onde os moradores não podem ter mais acesso devido à reintegração de posse, existe uma mãe gameleira, que está lá desde o século passado, quando ainda era terreiro, porém, foi derrubado. As gameleiras são muito importantes para as religiões de matriz africana, pois era onde as pessoas colocavam suas oferendas” conta Rosemeire Silva, quilombola de Rio dos Macacos .
Os terreiros de santo foram destruídos e seus líderes perseguidos por causa de seus rituais religiosos. As águas são fundamentais para as práticas de culto às religiões africanas, pois preservam a identidade quilombola, a integralidade e a visão de mundo dos seus descendentes. A prática religiosa é comum na memória e na rotina da comunidade que resiste até os dias de hoje com essa cultura, sendo de total importância a garantia constitucional de proteção às comunidades e a preservação do patrimônio cultural brasileiro.
Desassistência estatal e insegurança alimentar
Os/as moradores/as do Quilombo Rio dos Macacos não têm acesso à água encanada proveniente da Embasa, que inclusive já se posicionou por mais de uma vez afirmando que não seria viável economicamente instalar uma rede de abastecimento no território quilombola. As águas da Barragem se constituem, portanto, como a única fonte segura de água para os/as quilombolas, seja para a pesca, seja para o próprio consumo.
A cultura da comunidade sempre foi de partilha dos recursos. A posse da fonte de água - Barragem - até a decisão liminar era realizada mediante o uso compartilhado das águas. A medida liminar na Ação Possessória interposta contra Associação Remanescente de Quilombo de Rio dos Macacos afeta diretamente um dos tripés da subsistência da comunidade, provocando grave crise alimentar e de saúde das famílias quilombolas.
Assim, a decisão também vai de encontro ao delicado momento que as comunidades tradicionais enfrentam frente à pandemia da Covid-19, fragilizando ainda mais suas possibilidades de superação da crise sanitária.
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