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Missão do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) no Oeste da Bahia identifica violações sistemáticas de direitos de povos e comunidades tradicionais

Comitiva esteve nos municípios de Barreiras e Correntina e cumpriu diversas agendas com comunidades e órgãos públicos. As duas regiões se destacam pelo avanço do desmatamento do Cerrado e da violação de direitos de povos e comunidades tradicionais





Há anos o oeste da Bahia, que integra a fronteira agrícola do Matopiba, tem sido palco de conflitos fundiários violentos, disparados pela ocupação ilegal de terras no Cerrado Baiano, em especial, a partir das décadas de 60 e 70. Com vistas a enfrentar esse cenário de desigualdade e violência, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) esteve em missão no Oeste da Bahia, de 17 a 22 de março, juntamente com a Associação de Advogadas/os de Trabalhadoras/es Rurais da Bahia (AATR), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, Agência 10Envolvimento, Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH) e Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq). As entidades tiveram apoio da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal ao longo dos seis dias de campo.


O objetivo da missão foi ouvir os relatos das comunidades sobre as violações de direitos ocorridas nos territórios a fim de denunciá-las aos órgãos competentes e criar recomendações e uma agenda de mobilização que ajude a frear os ataques e garantir aos povos seu acesso à terra e ao território.

A demanda pela visita do CNDH partiu de representantes de Territórios de Fundo e Fecho de Pasto do oeste da Bahia em abril de 2023. As missões de direitos humanos acontecem em locais onde as populações estão em risco devido a ameaças e conflitos territoriais, e também se dedica à proteção de defensores e defensoras de direitos humanos. 





Escuta ativa


A conselheira Luisa de Marillac iniciou os trabalhos enfatizando a importância da missão e o seu caráter de escuta ativa. “Vamos escutá-los e transformar isso num relatório, e que esse relatório possa servir não só para o CNDH cobrar, mas também para as comunidades cobrarem a efetivação dos seus direitos. Nossa tentativa é mobilizar os órgãos públicos para que as políticas públicas sejam efetivadas”. 


Durante os dias de missão, representantes dos Territórios de Fundo e Fecho de Pasto da Bacia do Rio Corrente que são alvo das investidas de grandes empreendimentos participaram de momentos de escuta da comitiva do CNDH. Membros da equipe ouviram relatos de diferentes violências sofridas pelas comunidades, como o uso de agrotóxicos como arma química, destruição de cercas e plantios, roubo e assassinato de animais, tiros, incêndios, ameaças de morte feitas por jagunços e seguranças privados contratados por empresas e fazendeiros, criminalização e prisões arbitrárias, além de torturas realizadas contra geraizeiros de Formosa do Rio Preto.


Para especialistas presentes na missão, a ocupação vertiginosa e fraudulenta do Cerrado está no cerne dos conflitos que acometem as comunidades. “O pano de fundo dos conflitos e violências contra comunidades e lideranças é a disputa de território que vem sendo feita a partir da grilagem”, enfatizou a Promotora de Justiça e coordenadora do Núcleo de Defesa da Bacia do São Francisco-NUSF, Luciana Khoury.


Omissão do Estado


Apesar dos inúmeros relatos de violações de direitos, as comunidades não têm recebido o apoio do Estado. "Fizemos algumas denúncias na polícia, alguns delegados eram até gentis. Mas com o tempo, como não tinha resultado de nenhum órgão, a gente parou de denunciar", relatou uma liderança. Um dos fecheiros ouvidos afirmou ter registrado mais de 30 boletins de ocorrência sobre as ameaças de morte e outras violências cometidas contra ele, mas nenhum deles resultou em investigação efetiva por parte da polícia.


Como resultado do silêncio do Estado, povos e comunidades tradicionais pagam um alto preço para resistir nos territórios. Integrante de uma das comunidades relatou que em um ataque orquestrado por fazendeiros em 2021, lideranças foram espancadas e torturadas com chutes na cabeça, nas partes íntimas e sufocamento com sacola plástica. 


Dentro do ordenamento jurídico brasileiro, o crime de tortura é hediondo e inafiançável. No entanto, ao buscarem a justiça, as lideranças foram criminalizadas a partir de um boletim de ocorrência lavrado pelos grileiros acusando-as de incêndios criminosos e roubo de armas da polícia. 


As comunidades relataram ainda que as ameaças físicas não são o único componente de desestabilização dos modos de vida. Na ocasião, enfatizaram que as ameaças psicológicas são silenciosas, mas trazem prejuízos para quem vive numa área em conflito. "Esse tipo de violência afeta a família toda, os filhos, as mulheres, as pessoas ficam com depressão, ansiedade, insônia, são humilhadas de jeitos que nunca imaginaram na vida. Isso adoece as pessoas. Tem muita gente nas comunidades que toma remédio".


Durante a missão, membros da comitiva testemunharam in loco violações cometidas havia poucos dias, como a destruição de uma ponte construída pelas comunidades, a obstrução de caminho com cerca, e a destruição de um rancho dos fecheiros, que serve de abrigo enquanto estão pastoreando o gado.


Estas e outras violações foram relatadas por integrantes da missão a representantes do poder público e sistema de justiça em Barreiras e Correntina, como promotores, procuradores federais, juíza, oficiais da Polícia Federal, Polícia Militar e Polícia Civil, além de vereadores, prefeito e secretaria municipal de meio ambiente. Em abril, membros da missão terão agendas com representantes do poder público estadual em Salvador. 





Padrão na expropriação de terras


As similaridades nos relatos de diferentes comunidades evidencia um padrão de expropriação dos territórios do Cerrado, e de omissão de órgãos públicos no enfrentamento à invasão de terras públicas tradicionalmente ocupadas.


O estudo "Na Fronteira da Ilegalidade: desmatamento e grilagem no Matopiba", lançado em 2021 pela AATR e Campanha Cerrado, com a contribuição do Instituto Federal Baiano, se debruça sobre os fechos de pasto da Bacia do Rio Corrente, e tem como principal achado a apropriação ilegal de mais de um milhão de hectares de terras na região. “São fazendas fantasmas inventadas em ações de inventário”, comentou Maurício Correia, advogado popular e associado da AATR, um dos autores do estudo.


O estudo também aponta que nos últimos 20 anos, de 2004 até hoje, foram desmatadas mais áreas de Cerrado do que nos últimos 500 anos desde a invasão portuguesa ao território brasileiro. Maurício destaca que a pesquisa utilizou bancos de dados oficiais, o que confirma uma prática ilegal já consolidada nos órgãos públicos. “Foram utilizados dados do CAR, Cefir, Prodes, outorgas de uso de água e outras fontes de informação para chegar a esses números. As propriedades não têm destaque do patrimônio público”. 


Os relatos das comunidades e análises de membros da missão evidenciam que os processos de grilagem são reforçados e consolidados, entre outras formas, por desmatamentos em larga escala feitos com uso das ASVs, Autorizações de Supressão de Vegetação, concedidas aos grileiros pelo órgão ambiental da Bahia, o Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos). 


“Nas solicitações de ASVs e outorgas, as fazendas apresentam um título de propriedade ao Inema. Mas muitas estão sendo questionadas por estarem em territórios tradicionais, ainda não regularizados. Esta região é área de recarga do aquífero Urucuia. Quando a gente suprime a vegetação dessa região, a gente viola essas comunidades e impacta a bacia”, explicou a promotora Luciana Khoury.


Como saldo dessa balança desigual que conta com o apoio sofisticado da máquina pública por meio de fraudes cartoriais e legalização da grilagem para especulação imobiliária, as comunidades buscam formas de sobreviver em meio às violações de direitos.


Os fecheiros reafirmam que a luta pela vida, pelos territórios, pelo Cerrado em pé e suas águas limpas e sem cercas deve ser permanente e alimentada por todos. "Prefiro morrer na bala do que morrer de sede, porque se eu morrer na bala morre só eu, se eu morrer de sede, eu sei que muito mais gente vai morrer também".



Fotos: Divulgação/CNDH



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